DOR E GLÓRIA

Ventava e chovia forte enquanto permanecíamos enterrados dentro do cinema numa das maiores cidades da América Latina. Sem explicações, choro ao ver a cena dos dois homens que se encontram 30 anos depois do término da relação e que ainda se amam e se desejam. Como uma avalanche, os soluços me invadem. Me emociono com minha própria emoção. Porque comover-me com esse trecho? Olho a cena, sinto a história, olhos as cores, o cenário, a estética... O ator está tão humanizado nesse filme. Continua belo, mas isso é o que menos chama atenção (diferente de outros filmes protagonizados por ele). Ele é o homem comum que chora, sofre, sente dores físicas e emocionais, se droga, se automedica... Ele é um pouco de cada um de nós. Esse que precisa resolver sentimentos, dores passadas, palavras silenciadas. Contas a acertar com pai, mãe, irmão... Quem não as tem? Quem não se pregunta porque se tornou o que se é? Nada no personagem nos remete ao galã de outras películas. Ao contrário, sentimos pena dele, mas a pena que sentimos muitas vezes de nós mesmos; o olhamos como um homem mais envelhecido pelas dores subjetivas da vida do que pela idade. Ao final permanecemos sentados na sala de cinema até que todas as luzes se acenderam e os funcionários entraram para limpa-la para a próxima sessão. Saímos com a rua molhada pela chuva e comentamos sobre essa capacidade do cinema em nos transportar (nessa junção sinestésica de imagem e som) a um emaranhado de sensações inesperadas e incompreensíveis... Falo do choro; ele me diz que escutou meus soluços. Aperto sua mão; sinto-me feliz e acolhida. Falamos tantas coisas enquanto caminhávamos de mãos dadas até a estação do metrô. Ao falarmos do filme (sem perceber) falávamos de nós... Em nossas buscas, acertos e desacertos do cotidiano somos também essas pessoas de carne e osso. Não somos nem o galã do filme nem a modelo da capa da revista. Somos falhos, medrosos, inseguros, possessivos, infantis (não que a modelo e o galã não o sejam...), quando olhados bem de perto e sem filtro, temos tantas imperfeições no rosto. Como disse Saramago num filme, certa feita, se tivéssemos a acuidade visual do falcão não nos apaixonaríamos. Mas somos muito mais que o falcão porque julgamos, escolhemos, ponderamos... Mesmo nas piores situações. E somos também belos, eróticos, amorosos e corajosos no auge nos nossos 40, 45 anos. Nossa parte falcão? Nossa parte humana. O que é ficção, o que é realidade, mesmo quando narramos nossa vida? A vocação surge na infância? O desejo surge na infância? O que mais ela gera? Homens que viram suas mães abandonadas e maltratadas por seus pais, inconscientemente perdoam-nas, mas culpam e desconfiam de todas as outras mulheres para o resto de suas vidas? E, no entanto, cabe a nós liberta-los? Mesmo que insistam em nos colocar e um determinado caminho, tudo poderá dar errado sob o ponto de vista desses que o traçou? Mesmo as melhores intenções podem dar errado (sob o ponto de vista de quem traçou o caminho)? Olhamos nossas roupas. Projetados nossos corpos nas paredes amarelo clara-de-ovo do vagão do trem comporíamos uma linda estética, muito próxima à do filme. Porque, apesar de ter vivido uma das situações mais profundas que alguém pode viver, insistes em viver na superficialidade? Em que parte da sua vida aprendeste a adiar a felicidade? A sabota-la e a concebê-la como não digna para ti? Perguntei-lhe. O que é ficção, o que é realidade, mesmo quando narramos nossa vida?

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